segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Trabalho e santificação

Peço desculpa pelo comprimento do texto, mas como é um tema sensível e importante, não consegui sintetizar melhor.

Outro dia tive uma discussão com uns amigos sobre o significado do papel profissional de cada um na vida cristã e na sociedade. Isso inevitavelmente levou a uma discussão sobre a relação entre a estrutura da sociedade e a vontade de Deus, e a ideia de santificação no trabalho, uma ideia muito disseminada entre os cristãos, de que eu nunca gostei e passo a explicar porquê. Esta explicação envolve sempre alguma arrogância na liberdade que me permito na interpretação das coisas, que é necessária para a discussão livre de qualquer tema. Mas claro que essa arrogância não implica nenhuma intenção de julgar ou condenar ninguém, e claro que a avaliação dessas coisas só Deus sabe, assim como a consciência de cada um.

Para compreender a minha posição, é preciso compreender os pressupostos nos quais ela assenta, que tentei clarificar e que são os seguintes:

1. Há uma diferença entre o estado actual da sociedade e a sociedade ideal como seria se tudo fosse segundo a vontade de Deus, e essa diferença inclui as próprias estruturas que formam a sociedade. Logo, a vontade de Deus implica também a transformação da estrutura da sociedade, e não a conformidade a essa estrutura tal como está.

2. Toda a actividade, estrutura ou organização tem uma origem, uma motivação e um objectivo, e essa origem, motivação e objectivo devem ser considerados no discernimento sobre a sua compatibilidade com a vontade de Deus. Por isso, não basta a dedicação a uma actividade: é essencial um discernimento sobre o próprio sentido do que se está a fazer nessa actividade. A quê ou a quem se está em última análise a servir: a Deus, ou a outros projectos? E se for a ambos, serão compatíveis?

3. Há profissões que não são nem boas nem más, dependendo isso do uso que se fizer dessa profissão; mas há também profissões que são boas e outras que são más, por causa da própria natureza da sua actividade. O critério que as distingue é o amor e a vontade de Deus (um exemplo radical é a prostituíção, cuja natureza da actividade vai em si mesma contra a vontade de Deus – mas outros exemplos haverá, menos radicais e menos fáceis de discernir).

4. Há uma diferença entre “as coisas de Deus” e as “coisas terrenas”, embora as coisas de Deus devam estar presentes e ser transversais às coisas terrenas. Esta diferença é reconhecida muitas vezes por Jesus, por exemplo, quando diz que nos preocupemos primeiro com as coisas de Deus, e que tudo o resto, como o vestir e o comer, nos será depois dado em acréscimo (Mt 6, 29-34). O vestir e o comer podem ser entendidos então como as coisas terrenas, e a maior parte das profissões é dessas coisas terrenas que tratam.

5. As "coisas de Deus" são muito mais importantes para o nosso caminho espiritual – a nossa santificação - do que as coisas terrenas. Jesus distinguiu claramente isso também várias vezes. Por exemplo, quando Maria estava atenta a ouvir Jesus aos seus pés, e Marta estava atarefada com o serviço da casa, Jesus disse a Marta que uma só coisa é necessária, e que Maria escolheu a melhor parte (Lc 10, 38-42). Mais uma vez, pode-se aqui entender que o serviço da casa se equipara ao papel profissional das coisas terrenas, e o estar aos pés de Jesus a ouvi-lo se equipara às coisas de Deus.

6. Assim, o que nos salva e santifica não é nada mais do que "estar aos pés de Jesus a ouvi-lo", ou seja, aproximarmo-nos de Deus pessoalmente e com o coração. Isso não se faz através das “coisas terrenas”, mas através das “coisas de Deus”: a oração, a Palavra, os sacramentos, enfim, uma relação viva com Deus. O resto, a manifestação desse amor em todos os outros planos da nossa vida, incluindo o profissional, será uma consequência natural disso: um fruto. Ao dizer “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7, 15 – 20), Jesus estava a considerar a manifestação do amor em todos os planos da nossa vida como uma consequência da santificação que se atinge pela aproximação espiritual a Deus, e não como um meio para essa santificação.

7. Missão e profissão são coisas diferentes. A missão refere-se sempre às "coisas de Deus", directa ou indirectamente. A profissão refere-se às coisas terrenas como subsistência, organização e manutenção das coisas terrenas. Uma actividade pode ter ao mesmo tempo um conteúdo de missão e um conteúdo de profissão, mas não deixam de ser coisas diferentes. Uma profissão, quando não tem como objectivo directo ou indirecto as coisas de Deus, não é uma missão. O que não quer dizer, obviamente, que seja má: são planos diferentes.

8. Todos temos uma missão no que diz respeito às coisas de Deus, independentemente da nossa profissão e de todas as outras coisas terrenas que fazem parte da nossa vida. Não há uns destinados a trabalhar na padaria, e outros destinados a testemunhar a Boa Nova. Todos somos chamados a viver uma vida terrena com todas as suas características, e ao mesmo tempo a testemunhar a Boa Nova para além disso e transversalmente a isso. São Paulo, por exemplo, era construtor de tendas, e foi um grande apóstolo para além da sua profissão: a sua missão e a sua profissão estavam em planos separados.

9. A importância de todas as profissões que não são missão (que não se destinam às coisas de Deus directa ou indirectamente) é igual: não é melhor ser um psicólogo ou um médico do que um padeiro ou um pedreiro. Qualquer diferença entre si em termos da sua importância ou sucesso, para Deus, é medida apenas pelo amor com que as fazemos.

10. O amor é sempre gratuito. Uma vez que obtemos lucros com a nossa profissão, mesmo que seja feita com amor, não deixa de ter uma outra intenção misturada com o amor. O amor presente numa profissão é um acréscimo à natureza terrena dessa profissão, mas não anula o seu carácter essencialmente terreno.

Agora que tentei clarificar os seus pressupostos, explico a minha posição em relação a este assunto: se se concordar com todos estes pressupostos, chega-se necessariamente à conclusão de que aquilo que salva não é nada mais do que uma relação íntima com Deus, através dum processo de conversão interior. A partir dessa conversão interior, dessa "uma só coisa necessária", os frutos do amor de Deus transbordam para tudo o resto. Não há nenhuma área da vida humana que seja diferente de outra nessa manifestação do amor de Deus, e a profissão é só uma entre muitas.

Assim, faz tanto sentido dizer que o trabalho santifica, como que o surf santifica, ou que andar de transportes públicos santifica. Nada disso santifica, apenas uma relação de amor com Deus santifica, o que não quer dizer que todas essas ocasiões não sejam essenciais na manifestação do amor de Deus. Como disse São Bernardo de Claraval, o amor é para si mesmo o mérito e o prémio, e não busca outro motivo fora de si. O amor e perfeição que se tiver em tudo, será um fim em si mesmo, uma consequência dessa santificação, e não um processo através do qual nos santificamos. E essa consequência é transversal a todas as dimensões humanas, não fazendo sentido nenhum enfatizar umas mais do que outras.

Claro que São Paulo, enquanto construtor de tendas, o fazia com amor e dedicação, mas apenas como uma consequência natural da santificação que ele atingiu no plano espiritual. O amor manifesta-se no trabalho, no sono, nas refeições, no desporto, etc., etc., etc., e todas as suas manifestações nisso tudo vêm do centro que é Jesus Cristo. Pode-se dizer que essas manifestações de amor têm também em si uma força evangelizadora só por “transportarem” em si o amor de Deus e darem testemunho desse amor. Mas isso não faz delas uma missão, nem interessa se isso acontece na profissão ou noutra área qualquer, e não é a natureza da tarefa que o faz, mas sim o amor que se adiciona a essa tarefa. Se queremos procurar a santidade ou transmiti-la a outros, não o fazemos tentando ser perfeitos nas profissões ou noutra coisa qualquer, mas apenas aproximando-nos de Deus, e ajudando os outros a fazerem o mesmo. Isto, sempre através das “coisas espirituais”. E não somos nós que o fazemos pelos nossos esforços, mas é o Espírito Santo que o faz em nós, se assim entender e se nós o permitirmos.

Resumindo, há quatro coisas distintas e que é preciso distinguir bem: uma coisa é a santificação (aproximarmo-nos de Deus), outra coisa é a missão (servir a Deus ajudando outros a aproximarem-se de Deus), outra coisa é a manifestação do amor de Deus na nossa vida (seja na profissão ou em qualquer outra área), e outra coisa é a profissão (actividades destinadas à subsistência, manutenção e organização das coisas terrenas). Dentro das profissões, há as que são compatíveis com a vontade de Deus, e as que são incompatíveis com a vontade de Deus. A santificação e a missão são coisas de Deus, a profissão faz parte das coisas terrenas. As coisas terrenas, quando são compatíveis com a vontade de Deus, são boas, são um dom de Deus destinado à nossa felicidade, por isso, obviamente, apesar de não envolverem missão nem santificação, não são más. Quando, através da profissão, manifestamos o amor de Deus, isso não representa uma santificação nem uma missão, é um fim em si mesmo e é uma consequência natural da nossa proximidade com Deus que se manifesta tanto na profissão como em outra área qualquer. Tanto amamos no trabalho, como na rua, como a respirar, a comer ou a lavar os dentes. Esse amor não está ligado à natureza de qualquer um destes actos em si, mas é qualquer coisa que se adiciona a todos estes actos, por isso não precisa de um ou de outro para se manifestar. Não é preciso trabalhar para se amar, nem a nossa santificação ou missão depende do trabalho.

Concluindo, a ideia da santificação pelo trabalho tende naturalmente a validar a estrutura da sociedade sem a questionar, e corre um grande risco de ser conivente com essa estrutura. É uma ideia naturalmente promotora duma fractura entre as diferentes áreas da vida humana na manifestação do amor de Deus, enfatizando umas em detrimento de outras. Tem tendência também a promover o cumprimento mecânico de tarefas e a negligência da verdadeira conversão interior, como se bastasse ser-se competente e dedicado no trabalho para se atingir a santidade. E, por último, tem tendência a situar a salvação nos nossos esforços pessoais na busca dum perfeccionismo pessoal, quando a salvação vem apenas pela aceitação e acolhimento dos Dons e da Graça de Deus. Por todas estas razões, não gosto dessa ideia, e acho que ela tem afastado muitos cristãos daquilo que é essencial: do centro que é a relação pessoal com Jesus Cristo, a “uma só coisa necessária”.

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